Tubarões Contaminados por Cocaína na Costa Brasileira: Um Alerta sobre a Poluição Química Emergente.
- Thais Riotto
- 26 de set.
- 4 min de leitura

Local: Recreio dos Bandeirantes, Rio de Janeiro/BR
Introdução
Em 2024, um estudo conduzido por pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e publicado no periódico Science of the Total Environment trouxe à tona um achado inédito e preocupante: a detecção de resíduos de cocaína (COC) e de seu principal metabólito, a benzoilecgonina (BE), em tubarões da espécie Rhizoprionodon lalandii (conhecidos popularmente como tubarões-bico-fino), capturados no litoral da zona oeste do Rio de Janeiro, especificamente em Recreio dos Bandeirantes.
Este marco científico representa o primeiro registro mundial de contaminação por drogas ilícitas em elasmobrânquios e evidencia um novo capítulo na problemática dos contaminantes emergentes nos ambientes marinhos.
Metodologia e Amostragem
Espécie analisada: Rhizoprionodon lalandii.
Número de indivíduos: 13 (3 machos e 10 fêmeas).
Período de coleta: setembro de 2021 a agosto de 2023.
Locais: águas costeiras do Recreio dos Bandeirantes (Rio de Janeiro).
Tecidos estudados: músculo e fígado.
Técnica laboratorial: cromatografia líquida acoplada à espectrometria de massas em tandem (LC-MS/MS), conduzida em laboratório especializado.
A escolha dessa espécie se justifica por sua ocorrência abundante em águas costeiras rasas e sua relevância na cadeia trófica, o que permite avaliar riscos potenciais para o ecossistema e para a saúde pública.
Resultados Principais
Os resultados revelaram uma contaminação generalizada:
Cocaína (COC): detectada em 100% dos 13 tubarões analisados.
Benzoilecgonina (BE): presente em 12 dos 13 indivíduos.
Concentrações médias encontradas
Cocaína: 23,0 µg·kg⁻¹ (média geral).
No músculo: 33,8 ± 33,4 µg·kg⁻¹.
No fígado: 12,2 ± 14,2 µg·kg⁻¹.
Benzoilecgonina: 7,0 µg·kg⁻¹ (média geral).
Diferenças entre sexos
Fêmeas apresentaram concentrações significativamente mais altas de cocaína no músculo:
Fêmeas: 40,2 ± 35,8 µg·kg⁻¹.
Machos: 12,4 ± 5,9 µg·kg⁻¹.
Correlações observadas
Relação positiva entre cocaína e benzoilecgonina (rho = 0,84 em fêmeas).
Associação entre BE e peso corporal (rho = 0,62).
Correlação entre cocaína e índice de condição (rho = 0,73).
Em fêmeas não grávidas, BE e COC no músculo mostraram correlação perfeita (rho = 1,00), sugerindo exposição sistêmica e metabolismo ativo da droga nos organismos.
Fontes Potenciais de Contaminação
A presença de cocaína em tubarões pode ser atribuída a múltiplas rotas:
Descarga de esgoto doméstico: usuários humanos excretam cocaína e BE, que passam por sistemas de tratamento muitas vezes ineficientes antes de atingir o mar.
Resíduos de laboratórios clandestinos de refino: descartes irregulares de processos químicos usados no preparo da droga.
Tráfico marítimo: perda ou descarte proposital de carregamentos ilícitos no oceano.
A região de coleta (Recreio dos Bandeirantes) sofre forte influência de descargas urbanas e de lagoas costeiras poluídas, o que reforça a hipótese da contribuição de esgoto urbano.
Comparações com Outros Estudos no Brasil
Pesquisas anteriores já haviam identificado a presença de cocaína e derivados em águas costeiras, sedimentos e moluscos bivalves:
Baía de Santos (SP): detecção de cocaína em água e em mexilhões (Perna perna).
Estudos experimentais com mexilhões e peixes (zebrafish): apontam efeitos tóxicos, incluindo danos oxidativos, genéticos e reprodutivos, mesmo em concentrações ambientalmente baixas.
Esses trabalhos indicam que o fenômeno da contaminação por drogas ilícitas não é isolado, mas parte de um cenário mais amplo de poluição química crônica.
Impactos Ambientais e Ecológicos
A presença de cocaína e de seu metabólito em tubarões representa uma ameaça ainda pouco mensurada, mas potencialmente grave:
Bioacumulação: substâncias podem se acumular nos tecidos dos animais, persistindo ao longo do tempo.
Alterações fisiológicas e reprodutivas: estudos em bivalves e peixes sugerem que drogas ilícitas causam estresse oxidativo, alterações genéticas e comprometimento da reprodução.
Risco à cadeia alimentar: como predadores, tubarões podem transferir contaminantes a outros organismos e até, indiretamente, ao ser humano.
Efeitos sinérgicos: quando somados a outros poluentes (como metais pesados e microplásticos), os danos podem ser intensificados.
Implicações para a Saúde Pública
Embora o contato humano direto com a água do mar contaminada seja considerado de baixo risco, existem preocupações legítimas:
Consumo de pescado: ainda que a carne de tubarão não seja amplamente comercializada no Brasil, há registros de venda irregular; a bioacumulação de cocaína e BE poderia representar risco alimentar.
Exposição indireta: a persistência desses compostos no ambiente pode afetar espécies de valor comercial, ampliando os riscos para o consumidor final.
Limitações do Estudo
Amostragem restrita: apenas 13 indivíduos, em uma área geográfica específica.
Ausência de análises ambientais diretas: não foram coletadas amostras de água e sedimento no mesmo período, o que dificulta o rastreamento exato da origem.
Falta de séries temporais: ainda não se sabe se essa contaminação é pontual, sazonal ou crescente.
Direções Futuras de Pesquisa
Os autores e especialistas sugerem próximos passos essenciais:
Monitoramento sistemático de águas, sedimentos e diferentes espécies marinhas ao longo da costa brasileira.
Estudos toxicológicos controlados em organismos locais para determinar impactos fisiológicos e reprodutivos.
Investigação das fontes urbanas e clandestinas para identificar e mitigar pontos críticos de entrada da droga no ambiente.
Avaliação da biomagnificação ao longo da cadeia alimentar, com foco em espécies de consumo humano.
O achado da Fiocruz inaugura um campo de preocupação emergente: a contaminação marinha por drogas ilícitas.
O fato de todos os tubarões analisados apresentarem cocaína em seus tecidos aponta para uma poluição invisível, mas persistente, com implicações ecológicas e sociais significativas.
A descoberta reforça a urgência de incluir drogas ilícitas na agenda de contaminantes emergentes, exigindo monitoramento contínuo, políticas públicas integradas e conscientização sobre como atividades humanas, inclusive o narcotráfico e a má gestão do esgoto, deixam marcas profundas no equilíbrio dos ecossistemas marinhos brasileiros.
Site Oficial: https://fiocruz.br/noticia/2024/07/pesquisa-inedita-da-fiocruz-detecta-contaminacao-por-cocaina-em-tubaroes
Bibliografia
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Sei que a matéria é real e séria por estar no seu blog, e conheço suas pesquisas, e livros... há bastante tempo, mas chega ser um absurdo pensar que chegamos a esse ponto. Tem razão S.O.S oceano e Planeta Terra.
Quando o mundo vai acordar???