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Entre Máscaras e Montanhas - O Mistério Vivo do Festival Tschäggättä no Vale de Lötschental


 

O carnaval Peculiar dos Alpes


No coração dos Alpes suíços, cercado por montanhas cobertas de neve e vilarejos que parecem congelados no tempo, acontece um dos carnavais mais antigos e misteriosos da Europa: o Tschäggättä. Celebrado no vale de Lötschental, no cantão do Valais, essa tradição única mescla ritos pagãos, arte popular, identidade comunitária e performance social.


Entre fevereiro e o início da Quaresma, as ruas tranquilas do vale se transformam em palco de uma celebração inquietante.


Homens vestidos com peles de animais, portando máscaras grotescas esculpidas em madeira, percorrem as vilas assustando os moradores e ecoando o som dos grandes sinos de vaca que carregam na cintura.


O que à primeira vista parece uma simples travessura carnavalesca, na verdade esconde séculos de história e simbolismo.

 

Origens e história: ecos de um ritual pagão


A origem do Tschäggättä perde-se no tempo. Embora os registros escritos mais antigos datem do século XIX, acredita-se que a prática seja muito anterior, remontando a ritos pagãos destinados a afastar os espíritos do inverno e invocar a fertilidade da primavera.


Alguns estudiosos relacionam a tradição a antigos ritos alpinos de purificação e inversão social, comuns em comunidades rurais da Europa Central.


O anonimato conferido pela máscara permitia aos aldeões transgredir regras sociais, zombar das autoridades e exorcizar simbolicamente os medos coletivos.Durante séculos, as figuras mascaradas circulavam sem regras definidas.


Com o passar do tempo, a Igreja e as autoridades locais tentaram limitar as aparições, fixando horários e impondo restrições, especialmente para conter comportamentos violentos ou excessos de álcool. Ainda assim, o Tschäggättä sobreviveu, adaptando-se às novas realidades sem perder seu caráter enigmático.


Hoje, o Museu do Lötschental, localizado na vila de Kippel, preserva máscaras e registros da tradição, incluindo exemplares do final do século XVIII.


Esse acervo constitui não apenas uma memória material, mas também um símbolo de resistência cultural de uma comunidade isolada que encontrou na máscara o espelho de sua própria história.

 

A performance: entre o medo e a festa


O festival acontece todos os anos entre o Dia de Candelária (2 de fevereiro) e a terça-feira de Carnaval, quando os Tschäggättä tomam as ruas ao entardecer.


Os personagens trajam peles de cabra ou ovelha, luvas coloridas de lã e grandes sinos de vaca amarrados ao cinto. Mas o elemento mais marcante são as máscaras de madeira de pinho, esculpidas à mão e pintadas com traços grotescos, frequentemente adornadas com chifres, dentes e olhos esbugalhados.


Em grupos, os Tschäggättä percorrem as vilas, invadindo tavernas e becos, perseguindo jovens e crianças e esfregando-lhes neve ou fuligem no rosto. Essa interação lúdica, embora assustadora, tem uma função social clara: promover a integração comunitária, aliviar tensões e reforçar os laços de pertencimento.


Nas últimas décadas, o desfile tornou-se mais organizado e visível, atraindo fotógrafos, turistas e estudiosos.


Hoje há concursos de máscaras, exposições e oficinas que valorizam a arte dos escultores locais. Ainda assim, para os moradores, o verdadeiro Tschäggättä continua sendo aquele praticado nas sombras das ruas, longe das câmeras e das vitrines.

 

 As máscaras: arte, mito e identidade


A máscara é o coração simbólico do Tschäggättä. Esculpida em madeira de pinho ou zimbro, cada peça é única, resultado da imaginação e da mão de um artesão que traduz nas formas grotescas as forças ocultas da natureza alpina.


No passado, as máscaras eram confeccionadas de maneira rudimentar, sem pintura e com traços angulosos, representando espíritos selvagens ou demônios protetores.


Com o tempo, o estilo se refinou, ganhando expressão artística própria. Hoje, há concursos anuais que premiam os melhores escultores, e muitos artesãos, como Heinrich Rieder e outros mestres da região, mantêm oficinas dedicadas exclusivamente a essa arte ancestral.


O Museu do Lötschental abriga uma das mais importantes coleções de máscaras suíças, com exemplares datados de 1790, testemunhando a evolução estética e simbólica dessa tradição.


A máscara, ao mesmo tempo, oculta e revela: oculta a identidade individual e revela a alma coletiva do povo do vale.

 

Significados sociais e antropológicos


Para além do aspecto artístico, o Tschäggättä tem profundas funções sociais.Tradicionalmente, apenas os homens solteiros participavam, o que fazia do ritual um rito de passagem entre a juventude e a vida adulta.


O anonimato permitia que jovens se aproximassem de mulheres e experimentassem uma liberdade temporária algo impossível na rígida estrutura social alpina do século XIX.


Essa inversão de papéis onde o medo, o anonimato e a desordem são socialmente aceitos é uma característica recorrente nos carnavais europeus, mas ganha no Lötschental uma intensidade particular, marcada pelo isolamento geográfico e pela espiritualidade local.


Antropólogos como Konrad J. Kuhn descrevem o Tschäggättä como um fenômeno de “magia social”, no qual a máscara simboliza tanto a libertação quanto o controle: ela dá poder ao indivíduo, mas o insere em uma identidade coletiva maior a do próprio vale.

 

Patrimônio e turismo: entre a tradição e a vitrine


Nas últimas décadas, o Tschäggättä atravessou uma profunda transformação.A crescente atenção de turistas e pesquisadores levou à musealização da tradição e à sua integração nas estratégias de turismo cultural da Suíça.


Hoje, o evento é amplamente divulgado em sites oficiais, vídeos promocionais e festivais internacionais, atraindo visitantes interessados em “vivenciar o carnaval mais assustador dos Alpes”.


Essa visibilidade, no entanto, gerou um debate interno: como preservar a autenticidade de um rito ancestral diante da espetacularização e do consumo turístico?


Enquanto alguns moradores veem o turismo como forma de manter viva a tradição e sustentar a economia local, outros temem que o Tschäggättä se torne apenas uma encenação folclórica, esvaziada de seu verdadeiro espírito.


Ainda assim, o festival continua sendo um símbolo de resistência e identidade.


Ele reafirma o orgulho de uma comunidade que, mesmo diante das transformações do mundo moderno, mantém viva uma prática que atravessou séculos, mantendo o elo entre o passado mítico e o presente globalizado.

 

O grito ancestral dos Alpes

O Tschäggättä é mais do que uma festa: é um rito de identidade, medo e celebração da vida.


Em cada máscara entalhada, em cada sino que ecoa pelos vales, pulsa a memória coletiva de um povo que transformou o inverno em espetáculo, o medo em arte e o anonimato em liberdade.


O festival suíço não é apenas um evento folclórico é uma manifestação viva da herança imaterial de um povo que, entre montanhas e lendas, encontrou na máscara o rosto de sua própria alma.

 

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