Festival La Tomatina (Tomates)
- Thais Riotto
- 12 de nov.
- 5 min de leitura
Local: cidade de Buñol, Valenciana/Espanha
O espetáculo vermelho de Buñol
No coração da Comunidade Valenciana, na pequena cidade de Buñol, realiza-se um dos festivais mais emblemáticos e inusitados do mundo: La Tomatina.
Conhecida pela gigantesca batalha de tomates que toma as ruas na última quarta-feira de agosto, a festa transformou-se de uma manifestação local espontânea em um fenômeno cultural e turístico de alcance global.
Mais do que uma simples brincadeira, La Tomatina reflete o modo como tradições populares se reinventam, tornando-se símbolos de identidade local e produtos de exportação cultural.
Origens e lendas sobre o nascimento da festa
As origens de La Tomatina remontam à década de 1940, embora não haja consenso sobre o episódio exato que lhe deu início.
A versão mais difundida narra que, durante o desfile das festas patronais de Buñol, um grupo de jovens teria iniciado uma briga próxima à praça principal, utilizando tomates de uma banca de verduras como arma improvisada.
O episódio teria causado tanto espanto quanto diversão, repetindo-se nos anos seguintes até se consolidar como parte das celebrações locais.
Outras teorias, no entanto, oferecem diferentes leituras sobre o surgimento do evento. Alguns moradores afirmam que a festa começou como uma forma de protesto popular, em um contexto de tensões sociais e políticas do pós-guerra espanhol.
Há ainda quem sustente que tudo começou de maneira acidental, após a queda de um caminhão de tomates, ou que tenha sido apenas uma brincadeira organizada por jovens em busca de diversão.
Nenhuma dessas versões foi oficialmente comprovada, mas juntas formam o imaginário coletivo que sustenta a identidade popular da festa.
Proibições, resistência e oficialização
Durante os primeiros anos, especialmente na década de 1950, as autoridades franquistas proibiram a realização da Tomatina, considerando-a uma desordem pública e uma afronta à moral da época.
Apesar disso, a população de Buñol resistiu, recriando o evento de forma simbólica.
O episódio mais marcante dessa resistência ocorreu em 1957, quando os habitantes organizaram o “Entierro del Tomate” um cortejo fúnebre paródico em que simulavam o enterro da festa, com caixões e músicas melancólicas.
O ato satírico acabou sendo um protesto eficaz: a partir dos anos seguintes, a proibição foi relaxada e o festival voltou a acontecer.
Com o passar do tempo, La Tomatina foi ganhando força e reconhecimento. Nos anos 1980 e 1990, a festa já atraía visitantes de toda a Espanha, e sua popularidade cresceu exponencialmente graças à cobertura televisiva e ao interesse internacional.
Em 2002, o governo espanhol declarou oficialmente o evento como “Fiesta de Interés Turístico Internacional”, reconhecendo seu valor cultural e sua contribuição ao turismo local. Esse título consolidou La Tomatina como uma celebração oficial e legitimou sua continuidade.
Estrutura e funcionamento do festival moderno
Atualmente, La Tomatina é um evento altamente organizado, com regras, ingressos e logística controlada.
Realiza-se tradicionalmente na última quarta-feira de agosto, e dura cerca de uma hora, geralmente entre o meio-dia e a uma da tarde.
O início da batalha é marcado por um ritual singular chamado “palo jabón”: um poste ensaboado é erguido no centro da praça, e quem conseguir escalar até o topo e pegar o presunto pendurado dá o sinal para o começo da guerra de tomates.
Caminhões carregados com aproximadamente 100 a 120 toneladas de tomates entram nas ruas estreitas da cidade, despejando o fruto sobre a multidão.
Os tomates usados são, segundo os organizadores, de qualidade inferior impróprios para o consumo e adquiridos de fornecedores locais exclusivamente para o evento.
As regras de segurança são rígidas: os participantes devem esmagar o tomate antes de lançá-lo (para evitar ferimentos), usar óculos de proteção e não portar objetos duros ou cortantes. Após o término da batalha, as ruas são lavadas com mangueiras e, em poucas horas, Buñol retorna ao seu estado original.
Desde 2013, por motivos de segurança e sustentabilidade, a prefeitura instituiu o sistema de ingressos pagos, limitando o número de participantes a cerca de 20 mil pessoas.
Essa medida buscou conter a superlotação e garantir maior controle sanitário e logístico, uma vez que o evento atraía, em edições anteriores, até 40 mil visitantes.
Impactos culturais, econômicos e ambientais
La Tomatina representa, para Buñol, um importante motor de visibilidade e renda. Durante a semana do festival, o número de visitantes supera amplamente o da população local, gerando impacto significativo na economia de serviços, como hospedagem, transporte, gastronomia e comércio.
O evento transformou-se em um símbolo de marketing turístico para toda a região de Valência, exportado em versões similares por cidades de outros países, como México, Colômbia, Índia e até nos Estados Unidos.
Entretanto, o festival também é alvo de críticas recorrentes. Organizações humanitárias e setores da imprensa questionam o uso de grandes quantidades de alimentos em um mundo marcado pela fome e desigualdade.
Em resposta, a prefeitura de Buñol e os organizadores defendem-se afirmando que os tomates utilizados não são próprios para consumo e que o evento traz benefícios econômicos que repercutem positivamente na comunidade.
No campo ambiental, o festival exige uma logística complexa de limpeza e descarte dos resíduos orgânicos.
Apesar do impacto visual da “maré vermelha” que cobre as ruas, o uso de água de reuso e o tratamento posterior dos resíduos têm sido aperfeiçoados, tornando o evento mais sustentável nos últimos anos.
Ainda assim, o debate sobre desperdício versus tradição continua sendo um tema central nas discussões acadêmicas sobre La Tomatina.
La Tomatina como fenômeno cultural e global
De uma briga improvisada entre jovens, La Tomatina evoluiu para um ícone cultural espanhol, celebrando o espírito festivo, o humor e a espontaneidade da população local.
Hoje, o festival é também um caso de estudo sobre globalização cultural, turismo de experiência e patrimonialização das tradições populares.
O evento ilustra como práticas locais podem ser transformadas em espetáculos globais sem perder pelo menos simbolicamente sua ligação com o território e a comunidade que o originou.
Para Buñol, La Tomatina é mais do que um espetáculo turístico: é parte da identidade coletiva, uma tradição que conecta gerações e reafirma a importância da festa como espaço de encontro, catarse e pertencimento.
A “guerra de tomates” é, portanto, um ritual contemporâneo que mistura irreverência e memória, tradição e comércio, local e global.
Entre o mito e a modernidade
Setenta anos após seu nascimento, La Tomatina continua desafiando interpretações simples.
É, ao mesmo tempo, uma festa popular e um produto turístico internacional, uma brincadeira e um evento de alta complexidade logística. Seu sucesso reflete a capacidade das culturas locais de se reinventarem e dialogarem com o mundo contemporâneo sem perder completamente suas raízes.
A festa de Buñol ensina que o riso, o caos e o vermelho intenso dos tomates podem carregar significados mais profundos do que parecem à primeira vista símbolos de resistência, de identidade e da eterna celebração da vida coletiva em meio à efemeridade das tradições modernas.





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